[arte da genial Liana finck]
A menstruação deveria vir na sexta-feira santa junto com os ovos de chocolate e todos os frutos do mar que eu tinha encomendado com muita antecedência.
Não veio.
Pensei: ah, deve vir amanhã.
Não veio.
No domingo de ressurreição, Jesus voltou à terra e a minha menstruação não deu as caras.
Tal qual um ateu que não acredita na volta do criador, era impossível levar a sério a ideia de que eu pudesse simplesmente estar grávida. Tenho endometriose, taxa de fertilidade baixa, um ovário bem menor que o outro e já vinha falando com a minha médica há meses sobre a possibilidade de congelamento de óvulos para futura fertilização. Não era negacionismo, era ciência. Eu pensava ter fatos concretos para achar que tudo bem transar uma vez sem camisinha. Era (muito) difícil dar em alguma coisa.
Na segunda-feira, fui trabalhar e quando saí do estúdio, tinha uma farmácia logo ao lado. Mas como tem uma drogaria são paulo em cada esquina dessa cidade, não era um sinal, só uma facilidade. Minha menstruação era super certa, difícil de atrasar, então era melhor comprar um teste de gravidez. Entrei e comprei aquele mais caro que dá pra ver as semanas. Se era pra fazer um teste de gravidez, que fosse em grande estilo. Quando eu era mais nova, o medo de engravidar me assombrava constantemente. Podemos chamar de neurose? Podemos. Mesmo fazendo tudo certo, mês sim, mês não, eu achava que estava grávida. Então comprar teste de gravidez era uma constante e muitas vezes, tinha um pedido médico de Beta HCG guardado só caso fosse preciso ter mais certeza. Eu aprendi desde muito cedo que tinha a hora certa para engravidar (uma grande mentira, claro) e eu sentia que eu tinha muita coisa pra fazer até lá. Morria de medo de acontecer em um momento que eu não me sentisse minimamente preparada para ganhar um personagem principal novo na minha história. E nessa época, bom, eu, o meu próprio personagem, ainda estava em constante desenvolvimento.
Mas o tempo foi passando, as descobertas sobre o meu aparelho reprodutor vieram e eu fui ficando mais tranquila em relação ao assunto. Outros sentimentos surgiram, claro. O cenário social completamente desfavorável para a maternidade, mesmo que eu já soubesse que a minha seria cheia de privilégios e facilidades, e as centenas de medos diferentes que a gente sente de tomar uma das poucas decisões que são para vida toda. Casamento, carreira, mudança de cidade, estilo de vida, corte de cabelo, tudo é absolutamente transitório. Ter um filho não. Não dá para desistir se você sentir que aquilo não é para você. Ao mesmo tempo, não tem aula experimental. Sua gravidez vai ser única, seu filho vai ser único, seu jeito de ser mãe vai ser só seu. Não dá para pegar o filho da amiga emprestado, passar um final de semana e ver como você vai se sentir. Passei dois anos fazendo análise para me entender com todas essas e tantas outras questões e, apesar de ter falado para as minhas amigas que eu só queria engravidar em 2022, a verdade é que eu me sentia minimamente pronta e com vontade, o que já era mais que o suficiente.
Mas apesar de sentir que era um bom momento, era também bem improvável. Então, gastei mais tempo pensando se tinha CPF cadastrado na Drogaria São Paulo e se já era hora de renovar meu estoque de sabonete líquido de óleo de melaleuca do que no teste de gravidez que eu estava prestes a pagar.
Cheguei em casa como uma bala neurótica para tomar banho, afinal de contas, pandemia. Aproveitei e levei o teste para o banheiro porque eu também estava com vontade de fazer xixi. Se você está se perguntando cadê o Raphael nessa história, bom, ele ainda não sabia de nada. Minha credibilidade sobre "posso estar grávida" era comprometida pelos anos de neurose sem motivo, então eu sabia que a)ele não ia me dar crédito b)eu estava descrente, lembra? Não precisava contar para ele porque não ia dar nada. Bom, joguei toda a roupa infectada no cesto, fiz xixi no palito, deixei em cima da pia e entrei no chuveiro. Uma vez limpa e livre de coronavírus, me enxuguei e peguei o teste em cima da bancada em um movimento completamente natural. E aí, lá estava:
"Grávida (1-3) semanas".
Reli.
"Grávida (1-3) semanas"
Assim como o luto, a descrença também tem os seus estágios. O primeiro foi reler o que estava escrito na telinha aproximadamente 5x. O segundo foi continuar descrente e pegar a bula para verificar a eficácia desse tipo de teste. O terceiro, e decisivo, foi a constatação de que é quase impossível um falso positivo. O quarto, e último, foi fazer o que me restava: morrer de rir. Porque diante de toda descrença tem uma situação com um quê de absurdo, aquela pitada de "não é possível". Bom, ainda enrolada na toalha, aproximadamente 30s depois de passar por todos esses estágios, eu comecei a rir. Me vesti rindo, penteei meu cabelo rindo e desci rindo procurando Raphael. Escondi o teste atrás de mim e ainda em estado de quem acabou de ouvir a piada mais engraçada do mundo falei: você não sabe...
[Tudo isso aconteceu em abril de 2021. Hoje, fevereiro de 2022, quase um ano depois, escrevo esse texto olhando para a minha filha, que dorme tranquila no carrinho. Sou mãe de uma menina chamada Madalena e a descrença continua aqui, mas agora em outros formatos: não é possível que eu tenha tido uma gravidez tranquila, que eu não tenha morrido de dor no parto, que ela seja tão perfeita, e por aí vai.]
—
Por motivos óbvios, a maternidade é a minha questão central desde então e não fazia muito sentido começar a terceirgaveta falando de outra coisa. A ilustração do início é da artista americana Liana finck, autora e colaboradora da New Yorker que foi mãe há pouco tempo e fez uma série maravilhosa sobre o assunto. As minhas favoritas estão aqui, aqui e, principalmente, esse aqui. A Liana fala de outros assuntos, recomendo seguir sua conta lá no instagram.
—
Por hoje, acho que é…isso?
Não sei encerrar newsletters, talvez eu aprenda na próxima.
Amei, delícia de texto e que situação engraçada! rsrs A vida nos prega cada uma. Comigo também foi na pegada de não acreditar que pudesse estar, descobri com 9 semanas, rsrs diferente de ti meu ciclo menstrual sempre foi muito fora de sintonia e não tive nenhum sintoma, a não ser chorar por tudo e logo fui investigar, bimba! Kkk
Que coisa linda. Já quero acompanhar os próximos textos!