#10 | ter mais livros ou não ter?
Do sonho de ter uma biblioteca ao pânico de ter uma casa cheia: um dilema que não tem nada a ver com a quantidade de livros que eu leio e quero ler.
A maior influência que a Disney teve na minha vida não tem nada a ver com princesas, vestidos rodados e relacionamentos heteroafetivos desiguais e sem propósito. Quando lembro de mim criança e dos filmes que eu gostava, essas são as cenas que surgem:
A Bela andando pela vila lendo um livro
A Bela na livraria
A Bela feliz em meio aos livros
A Bela na biblioteca que a Fera fez para ela
Não tenho nenhuma lembrança das pessoas na minha casa lendo, nem minha mãe, que sempre foi muito inteligente, tinha o hábito da leitura. Nenhum dos meus tios fez faculdade e minha avó só estudou até a terceira série. Ter livros em casa não era uma realidade, mas a minha mãe fez tudo que podia para incentivar minha obsessão e nunca me negou nenhum livro, absolutamente nenhum. Sempre fez assinatura de mais de um quadrinho (sim, eu era a criança privilegiada que tinha assinatura da Turma da Mônica e da Disney simultâneas) e acatava meus pedidos de revistas, voltando do trabalho com uma sacolinha na mão. Considero que minha primeira influência literária foi a Bela, mas também sei que algumas coisas são nossas, como chips embutidos, porque só isso explica a alegria que sempre senti de ler qualquer coisa. E quando digo qualquer coisa, é qualquer coisa mesmo. Aos nove anos, voltava da escola em um ônibus de transporte escolar e era a primeira criança a ser ~coletada~ e, lógico, a última a ser entregue. Durante essa viagem longa e diária, eu costumava ler todos os muros, outdoors, placas e nomes de prédios que apareciam na minha frente. Até hoje sei nomes de ruas e prédios de Olinda decorados por causa dessa época.
Crescendo, gostar de ler virou parte de quem eu era. Frequentava a biblioteca capenga do meu colégio, orgulhosa da minha carteirinha de sócia, sempre pegando e devolvendo livros. Quando fiquei doente, aos 12 anos, uma enfermeira do hospital me emprestou uma edição de Harry Potter, dizendo que tinha uma filha da minha idade e que ela tinha gostado muito. Aquela história me salvou de um ano muito difícil de internações, quimioterapia e mais uma série de coisas que ninguém está preparado para lidar, muito menos uma criança. Sempre andei com livro na bolsa (devidamente embalado em um saquinho de plástico para não estragar), virei frequentadora assídua da biblioteca da universidade (essa sim, irretocável e maravilhosa) e, independentemente de quanto dinheiro eu tinha, sempre saía da livraria com pelo menos um livro na mão. Comprar livros não é gastar dinheiro, é um dos meus lemas até hoje. Com esse breve relato, você pode imaginar que ter uma biblioteca pessoal era um grande sonho, certo? Certo. E foi mesmo, por muito tempo. Quando mudei de Recife para São Paulo, trouxe todos os meus livros. Todos. Nunca gostei de doá-los e eles sempre tinham um lugar de destaque na sala. Biblioteca pessoal, lembra? Pois é. Mas aí dois grandes eventos, não relacionados, aconteceram:
Maio de 2016 - comprei um Kindle.
Eles não eram mais novidade (o primeiro tinha sido lançado em 2007), mas a discussão de livros físicos vs. ler livros digitais ainda era recorrente e eu fazia parte da turma que achava um absurdo preferir ler em uma tela do que no livro real. Um belo dia, comecei a ler a tetralogia napolitana da Elena Ferrante. Li o primeiro algumas semanas antes do segundo ser lançado em português, então foi fácil de esperar. Mas quando devorei “A História do Novo Sobrenome” não tinha sequer uma previsão de ter o terceiro traduzido e eu simplesmente precisava continuar lendo aquela história, precisava continuar em contato com aquele universo e, principalmente, com aquelas personagens. Não tive dúvidas: leria em inglês. Entrei na Amazon para comprar a edição em inglês que chegasse mais rápido. O mais rápido: três semanas. Nem a pau. Pesquisei quais lojas físicas vendiam um Kindle e duas horas depois, estava com o meu na mão lendo “História de Quem Foge e de Quem Fica” no meu sofá. Naturalmente, poucos dias depois terminei ele e já baixei o quarto. Sim, eu comprei um Kindle porque não conseguia esperar para terminar a tetralogia napolitana. Não deixei de comprar livros físicos, mas é verdade que a quantidade diminuiu de forma relevante, principalmente porque ter um Kindle é ter a livraria inteira à sua disposição e eu não precisava mais esperar a próxima visita para ler algo que eu queria. Sem falar que tem as amostras! Santas amostras. Que maravilha é ler um pedacinho de um livro deitada na cama e decidir se quero continuar naquela história ou não. Ter um Kindle me fez dar adeus aos livros na bolsa, a ter que decidir quais exemplares levaria em férias e principalmente, a deixar de ter medo de livros muito grandes. Tenho certeza de que teria terminado “Infinite Jest” se já tivesse meu Kindle. A verdade é que leio muito mais por causa dele e inclusive, dá pra ler deitada de lado, coisa que eu amo e sempre foi difícil com livros físicos de mais de 250 páginas em uma edição bem encadernada.
O segundo evento foi minha última mudança.
Um belo dia, eu morava em um sobrado delícia e decidi mudar para um apartamento, digamos, mais compacto. Uma decisão que não foi difícil nem doída na época (minha experiência de morar em casa foi bem agridoce), mas na mudança aconteceu sim uma coisa muito difícil e muito doída: perdi algumas caixas dos meus livros. Não sei exatamente como aconteceu, mas eu estava com oito meses de gravidez e mudar de uma casa para um apartamento com 1/3 do tamanho foi bem desafiador. Para dizer o mínimo. No dia da mudança, rodeada de caixas por todos os lados, eu chorava para o meu marido dizendo que tínhamos feito a pior burrada da nossa vida e veja, eu ainda não sabia que tinha perdido meus livros.
Essa mudança foi importante porque me fez ver que realmente não preciso de tantas coisas assim. Fiquei mais minimalista com tudo que sempre tive muito: livros, roupas, sapatos, pratos e panelas. Doei muita coisa (um altruísmo que nasce da falta de espaço ainda configura altruísmo, certo?) e hoje em dia compro muito menos. Talvez se meu marido não tivesse uma coleção de mais de mil discos eu não sentisse essa necessidade de ter menos coisas, risos, mas a verdade é que a falta de espaço anda inspirando um eu muito mais minimalista. Porém, quando penso nos livros, fico com um mix de sentimentos. Não deveria ficar feliz em ler os livros e não em ter os livros? Acho que sim. Não deveria achar ótimo poder acessar minhas partes grifadas sem precisar ir até uma estante e ter um super trabalho até achar as linhas que lembro ter grifado? Com certeza. Não deveria achar bom não ter que deixar nenhum fardo de herança para minha filha lidar no futuro? Aí eu já não sei. Li um artigo essa semana sobre a ‘Tsundoku’, uma expressão japonesa que fala sobre a arte de acumular livros, e fiquei mais mexida ainda. Comprar livros, mesmo quando não se tem planos de lê-los em breve, é uma aposta no futuro, um anúncio de que você terá tempo e desejo de descobrir novas histórias. Bonito isso, né? E falando na minha filha, considerando que ela talvez goste tanto de ler quanto eu, não vai ser legal ter uma biblioteca para ela explorar? Insira aqui um suspiro e a falta de respostas. Por enquanto, minha técnica é a seguinte: compro físicos os livros que mais mexeram comigo. Por exemplo, Carla Madeira, li todos (mais de 1x) no Kindle e comprei os três. Não dá para não ter os livros dessa mulher. Quero comprar “O Amor nos Tempos do Cólera” porque é uma das coisas mais especiais que já passou pelas minhas mãos. Comprei uma edição maravilhosa de “Moby Dick” e assim vou seguindo, sem aquela biblioteca enorme que sonhei quando era criança, mas com minhas histórias favoritas aqui pertinho de mim.
E você, tem algum critério para a compra de livros?
Falando em livros, terminei “Melhor não contar” da Tatiana Salem Levy há alguns dias e ainda sinto o peito esburacado, como se uma britadeira tivesse passado por cima sem dó algum. Um relato real sobre a perda da inocência entrelaçado por tantas passagens bonitas, tristíssimas e muito, muito pessoais. Claro que não é o primeiro livro autobiográfico que eu li, mas a construção escolhida por Tatiana coloca o leitor em um lugar de intromissão, como se a gente não pudesse estar ali, por mais que ela docilmente não largue da nossa mão, por mais que ela quase implore pra gente estar ali ouvindo a sua história. Me senti lendo o diário de outra pessoa e bom, acho que era exatamente o que ela queria.
Me peguei chorando diversas vezes. Me peguei revoltada outras tantas. Que duro que é ser mulher, mãe, filha…que duro que é. E que duro que deve ter sido contar essa história. Na verdade, que duro que deve ter sido não ter outra escolha a não ser contá-la. Bravo, Tatiana.
Oi, Nathalia :) Amei seu texto e tenho me identificado bastante com o que você escreve. Sobre os livros, faço algo parecido: leio no Kindle e os livros que mais me encantam merecem um espaço na biblioteca de casa, não é? Abraço.
O parágrafo inicial me descreveu! Meu critério para comprar livros físicos tem sido a presença de ilustrações ou gráficos (que são horríveis de ver no Kindle), a ausência de versão em ebook e, é claro, o bom e velho autógrafo, que só existe na versão física.